Alimentação é sem dúvida um tema de destaque nos dias atuais, seja na esfera governamental, científica ou social. Alimentação não é apenas uma questão de sobrevivência, sua função vai muito além, e tem relação direta com questões de saúde pública, aspectos culturais e socioeconômicos. Neste contexto, tão relevante quanto a alimentação é o papel que a indústria de alimentos exerce na sociedade e na economia de um país, sendo condição essencial para a Segurança Alimentar e Nutricional. Contudo, vive-se hoje um tempo em que o processamento de alimentos é alvo de críticas, e a imagem da indústria de alimentos é distorcida. Portanto, é importante dar voz a outra versão desta história, e trazer a luz o que não está sob os holofotes, para que a sociedade construa sua opinião.
Em relação a aspectos econômicos, no Brasil, segundo dados da Associação Brasileira das Indústrias de Alimentos (ABIA), a indústria produz 250 milhões de toneladas de comida por ano, representa 9,6% do PIB e gera 1,6 milhão de empregos formais e diretos. O Brasil é o segundo maior exportador de alimentos do mundo, e seus alimentos alcançam 180 países. São números que falam por si só, aqui está o valor que a indústria de alimentos brasileira desempenha na economia nacional.
De acordo com a publicação de 2018, “Alimentos industrializados – A importância para a sociedade brasileira”, do Instituto de Tecnologia de Alimentos (ITAL), órgão da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, para garantir as mais de 600 milhões de refeições necessárias a população brasileira de 209 milhões de habitantes, existe uma complexa logística de produção, distribuição, preparo e consumo. A publicação elucida que, além de mais de 71 milhões de famílias preparando refeições, há no Brasil mais de 1,5 milhões de estabelecimentos de serviços de alimentação, o que inclui bares, restaurantes, fast food, padarias, supermercados, lojas de conveniência, escolas, hotéis e hospitais. Segundo a POF 2017-2018 (Pesquisa de Orçamentos Familiares) do IBGE, a frequência de consumo alimentar fora do domicílio no Brasil é de 36,5%. Este é um número significativo que reforça a importância da indústria para atender essa população que necessita dos serviços de alimentação.
O ITAL destaca que o processamento de alimentos em escala industrial é fator chave para manter a regularidade do abastecimento da população e garantir a oferta de ampla variedade de alimentos em quantidade suficiente para a demanda da população. Um exemplo clássico, como haveria acesso a leite o ano todo sem pasteurização? Tal processo permite que o alimento seja transportado e estocado. Aqui está posta a importância da indústria de alimentos para a Segurança Alimentar. Em 2020, em decorrência da pandemia do novo coronavírus, foi publicado o Decreto nº 10.329/2020, que incluiu dentre as atividades essenciais a produção, distribuição, comercialização e entrega de alimentos e bebidas. Para essas atividades, segundo o Decreto, devem ser tomadas medidas para resguardar seu funcionamento para enfrentamento da emergência de saúde pública. Neste momento, a indústria de alimentos tem sua importância ainda maior e absolutamente reconhecida pelo governo e sociedade.
Além de garantir o abastecimento, de acordo com a publicação “Alimentos industrializados – A importância para a sociedade brasileira”, instalações industriais dentro de padrões tecnológicos recomendados, têm vantagens sob o ponto de vista sanitário, e esse tipo de produção é o mais seguro para controle da higiene e qualidade e dos riscos de contaminação. Conforme dados do Ministério da Saúde sobre a ocorrência de surtos de DTA (Doenças Transmitidas por Alimentos) no Brasil, em 2018 foram 503 surtos, 6.803 doentes e 9 óbitos, sendo que as residências lideram o local de ocorrência do surto e representam 35,8% dos casos. Em outras palavras, nem sempre o alimento dito “caseiro” é o mais seguro. O processamento de alimentos no nível de controles e procedimentos existente nas indústrias, desde a seleção de matérias-primas até o transporte, também é garantia da Segurança dos Alimentos.
Em relação a aspectos nutricionais e saudabilidade, a abundante variedade de alimentos processados é indiscutível, desde arroz, feijão, farinhas, café, pães, biscoitos, bolos, massas alimentícias até sucos de frutas, geleias, conservas vegetais, leites, queijos, iogurtes, bebidas lácteas, frios, produtos cárneos, pescado enlatado, passando por molhos, margarina, manteiga e óleos vegetais. Todos estes produtos disponíveis em diversas versões, tais como, sem lactose, sem glúten, sem açúcar, com teores reduzidos de sódio, açúcar e gordura, livre de gorduras trans, enriquecidos com vitaminas, minerais, fibras, ácidos graxos insaturados, proteínas, etc. Logo, aporte nutricional é o que não falta nos alimentos industrializados, além dos imensuráveis benefícios proporcionados a dieta e a saúde de minorias da população como diabéticos, intolerantes a lactose e celíacos, dentre outros casos de restrições alimentares. A publicação do ITAL já citada defende que todos os tipos de alimentos industrializados contribuem para a saúde e o bem-estar, e que todo alimento é saudável dentro de uma dieta equilibrada. O Instituto também afirma com base em estudos científicos, que os alimentos processados contribuem com uma ampla variedade de nutrientes, e que o valor nutricional de um alimento é dado pelo seu conteúdo e não pelo tipo de processamento ao qual foi submetido.
Cabe ressaltar ainda, as vastas opções de alimentos processados destinados a fins especiais, tais como os alimentos para nutrição infantil, nutrição enteral e suplementos alimentares, que indiscutivelmente exercem papel fundamental em saúde e nutrição. A recém divulgada pesquisa “Hábitos de Consumo de Suplementos Alimentares no Brasil – 2ª edição”, realizada pela Associação Brasileira da Indústria de Alimentos para fins especiais e congêneres (ABIAD), revelou crescimento de 10% no consumo de suplementos em comparação a 2015. O estudo mostrou que os suplementos alimentares estão presentes em 59% dos lares brasileiros, e 85% dos consumidores afirmaram que consomem por motivo de saúde, sendo que 51% das recomendações são feitas por profissionais de saúde. A pesquisa mostrou que durante a quarentena decorrente da pandemia de Covid-19, houve aumento de 48% no consumo de suplementos. Importante destacar que 70% dos entrevistados afirmaram que continuarão o consumo após a pandemia. Os números da ABIAD fortalecem a importância deste segmento da indústria de alimentos.
É importante considerar que a POF 2017-2018 revelou deficiências nutricionais na dieta do brasileiro, tal como a redução do consumo de fibras, especialmente na população de mulheres idosas. A POF 2017-2018 também mostrou deficiência no consumo de vitaminas e minerais, e que 85% dos adolescentes apresentaram ingestão insuficiente de cálcio, vitamina D e vitamina E no período. Dentre os adultos, inadequação superior a 85% foi identificada para cálcio, vitaminas A, D, E e B6. Os dados da Pesquisa do IBGE reforçam o papel da indústria de alimentos de inovar em produtos para suplementação da dieta e de ampliar a oferta de alimentos fortificados.
Outro ponto de vista sobre os benefícios que a indústria de alimentos entrega se refere a praticidade e conveniência. Indubitavelmente, não é possível imaginar a vida contemporânea sem o processamento de alimentos. O estilo de vida da população cada vez mais exige da indústria inovação para atender diferentes demandas, tais como, necessidades nutricionais específicas, alimentos adaptados ao tempo disponível para as preparações culinárias e para a realização das refeições, produtos adequados as suas crenças e aos seus valores éticos e sociais, produtos que possam ser consumidos em movimento, etc. De acordo com o Relatório da Euromonitor, “10 Principais Tendências Globais de Consumo 2020”, conveniência é um dos grandes temas do ano nos mais amplos aspectos de consumo, desde informação, passando por mobilidade e alimentação até tecnologia e inteligência artificial. Ainda, segundo o estudo “Brasil Food Trends 2020” realizado pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e ITAL, publicado em 2010, dentre as tendências para o consumo em alimentos, conveniência e praticidade já liderava o ranking, apontada por 34% dos consumidores brasileiros.
Fortemente relacionado a praticidade e conveniência, está o prazer proporcionado pela alimentação. Esse é um dos aspectos sociais do ato de se alimentar, abordado pelo Guia Alimentar para a População Brasileira, publicado em 2014 pelo Ministério da Saúde. O Guia recomenda desfrutar do que se come, e comer com regularidade e em companhia. Neste sentido, além do que já foi dito até aqui sobre o papel dos alimentos processados, é válido enfatizar essa demanda que devem atender. É imensa a capacidade da indústria de oferecer alimentos apropriados para ocasiões de consumo diferenciadas. Apenas alguns exemplos: o chocolate para despressurizar a mente após um dia tenso no trabalho, o salgadinho que acompanha o futebol na TV do domingo, a pipoca com refrigerante durante o cinema do sábado à noite, o brigadeiro da festa de aniversário das crianças, o prato congelado naquele dia que você saiu às 20h do escritório, o snack reservado na bolsa para aquela hora da fome no fretado após um dia de trabalho a cem quilômetros de casa, entre outros inúmeros exemplos que envolvem prazer, convívio social, e novamente, praticidade e conveniência adaptadas ao estilo de vida contemporâneo.
Frente a tantos predicados da indústria de alimentos, porque ela é alvo de críticas radicais e ideológicas? A saúde pública enfrenta mundialmente o crescimento da obesidade e Doenças Crônicas Não-Transmissíveis (DCNT). No Brasil, segundo a pesquisa do Ministério da Saúde, Vigitel 2019 (Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico), cerca de 55,4% da população brasileira apresenta sobrepeso, e 20,3% dos brasileiros estão obesos. Também, 7,4% é a prevalência de Diabetes no Brasil e 24,5% de hipertensão arterial. De acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde), os maiores fatores de risco de DCNT são: tabagismo, inatividade física, uso nocivo do álcool e dietas não saudáveis. As discussões sobre DCNT estão demasiadamente centralizadas em dietas não saudáveis como principal causa do problema. Por essa razão a indústria de alimentos enfrenta juízo negativo da opinião pública. Entretanto, o diálogo adequado a respeito de políticas públicas deve mitigar todos os fatores de risco para DCNT. Esse debate amplo e complexo está altamente polarizado, e alguns pontos merecem destaque para que o diálogo seja sadio e produtivo, e acima de tudo para que sejam tomadas ações assertivas em benefício dos consumidores, que são os mais prejudicados por discursos extremistas. São eles:
Primeiro ponto: o papel da atividade física no contexto do avanço da obesidade e DCNT. De acordo com a Vigitel 2019, cerca de 44,8% da população brasileira adulta apresenta nível de atividade física insuficiente. A OMS afirma que a prática de atividade física reduz o risco de hipertensão, Diabetes, infarto, entre outras doenças, além de ser fator fundamental para o balanço energético e controle de peso. O Global Action Plan on Physical Activity 2018-2030 da OMS recomenda aos países que desenvolvam políticas públicas que tornem as sociedades mais ativas a fim de melhorar os índices globais de saúde. O Plano preconiza a realização de parcerias público-privada para tomada de ações que ampliem as possiblidades de realização de atividade física pela população, por exemplo, construção de ciclovias e academias ao ar livre, além de campanhas educativas.
Segundo ponto: o papel da educação no contexto de dietas não-saudáveis. A EAN (Educação Alimentar e Nutricional) é fundamental para que o consumidor tenha conhecimento sobre alimentação e saúde, para adotar escolhas alimentares com autonomia e responsabilidade. No Brasil, a Lei nº 13.666/2018 inseriu a EAN nos currículos escolares do ensino fundamental e médio de escolas públicas e privadas. A medida é coerente, e pode contribuir para a mudança dos hábitos alimentares das crianças e adolescentes, o que beneficiará sua saúde por toda a vida. Também, no início de outubro, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) aprovou a nova legislação sobre rotulagem nutricional, que certamente proporcionará melhorias na disposição das informações no rótulo para o consumidor, como a inclusão da rotulagem nutricional frontal (FOPL – Front-of-Pack Labelling). Entretanto, ainda que o formato dos rótulos evolua, sem campanhas e ações educativas, a ferramenta será inócua. O Codex Alimentarius, órgão da OMS e da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), preconiza que a FOPL seja acompanhada por programas de educação dos consumidores para ampliar o entendimento e uso da informação.
Terceiro ponto: o equilíbrio e a moderação. Atreladas ao tópico anterior, escolhas alimentares saudáveis estão também intrinsicamente ligadas ao consumo equilibrado. Excessos na alimentação sempre acarretam em consequências negativas à saúde. Em relação a DCNT, o fator de risco dietas não-saudáveis se refere principalmente ao excesso de sódio, açúcar e gordura. Neste contexto, alguns dados precisam ser considerados antes dos holofotes serem direcionados ao perfil nutricional dos alimentos processados. Análise da ABIA, baseada em dados da POF 2008-2009, mostra que 56,3% do açúcar consumido pelo brasileiro é proveniente da mesa, ou seja, das preparações culinárias feitas em casa, enquanto 19,2% procedem do açúcar adicionado nos alimentos processados. Para o sódio, a análise da ABIA revela que 71,8% do consumo é oriundo do sal de cozinha, enquanto 23,8% provém dos alimentos industrializados. Em relação ao consumo calórico, segundo a POF 2017-2018 cerca de metade das calorias totais disponíveis para consumo nos domicílios brasileiros derivam dos alimentos in natura e minimamente processados, e 28,2% dos alimentos industrializados. Ainda, de acordo com a POF 2017-2018, cerca de 85,4% da população afirmou utilizar açúcar no adoçamento de bebidas e comidas, número que atinge 93% entre os adolescentes. Por último, enquanto a Vigitel 2019 mostrou crescimento de 8,5% na prevalência de obesidade no Brasil desde 2006, segundo a POF 2018-2018 há queda na frequência diária de consumo de alguns alimentos, tais como, macarrão instantâneo (-21%), biscoitos recheados (-33%), chocolates (-33%), refrigerantes (-34%), todas categorias alvo nas discussões de saúde pública. Estes números demonstram que os alimentos processados não podem ser responsabilizados de forma isolada pelo aumento de DCNT, tendo em vista sua real contribuição à dieta da população.
Quarto ponto: as ações desenvolvidas pela indústria em prol da saúde pública. Apesar de os alimentos industrializados não representarem a fonte majoritária responsável pelo excesso de açúcar e sódio na dieta do brasileiro, a indústria, assinou acordos voluntários com o Ministério da Saúde visando investir em pesquisa e desenvolvimento para melhorias nutricionais nos alimentos processados. Em 2018 foi assinado o acordo que tem como meta a redução de 144 mil toneladas de açúcares dos alimentos e bebidas até 2022. Fazem parte deste acordo 68 indústrias, que representam 87% do mercado de alimentos e bebidas do País. No caso do sódio, o Plano de Redução, também em curso, registrou a retirada de 17.254 toneladas até 2017, e a meta é atingir 28,5 mil toneladas este ano. Além destes compromissos, entre 2008 e 2010, outro acordo entre o Ministério da Saúde e a ABIA resultou na retirada de cerca de 310 mil toneladas de gordura trans dos alimentos industrializados.
Quinto e último ponto: o uso de substâncias químicas no processamento de alimentos. Algumas explicações são extremamente necessárias no tocante ao uso de aditivos alimentares. A publicação do Instituto de Tecnologia de Alimentos já referenciada, esclarece que não há mal à saúde quanto ao uso destas substâncias, uma vez que todas essas substâncias são aprovadas pela ANVISA para uso em alimentos. É importante enfatizar que essa aprovação pelo Agência se dá a luz de robusto conhecimento científico, a partir de amplos estudos toxicológicos avaliados por órgãos internacionais como o Joint Expert Scientific Committee on Food Additives (JECFA), que é o comitê científico da FAO/OMS. Também cabe colocar que o consumidor carece de informações claras, não somente sobre o processo científico-regulatório ao qual tais substâncias são submetidas, como também referente a origem destas substâncias e a finalidade tecnológica de uso. Por exemplo, existe hoje uma discussão calorosa sobre uso de emulsificantes em alimentos. De acordo com o artigo “Emulsificantes: Conceitos e Aplicações Gerais”, publicado pelo International Life Science Institute (ILSI Brasil) em setembro de 2020, escrito pela pesquisadora Ana Paula Badan Ribeiro da Faculdade de Engenharia de Alimentos da UNICAMP, os emulsificantes promovem a mistura de duas ou mais fases imiscíveis nos alimentos. Segundo a autora, o emulsificante mais utilizado pela indústria de alimentos é a lecitina, que é obtida principalmente dos óleos de soja, canola, milho e girassol. Ou seja, trata-se de substância obtida de alimentos vegetais absolutamente conhecidos e consumidos pela população, e que está devidamente autorizada para emprego em alimentos pelos órgãos sanitários ao redor do mundo e no Brasil.
É fundamental que o papel da indústria de alimentos seja reconhecido e o processamento de alimentos desmistificado. Afinal, em 2050, como será alimentada uma população mundial de 10 bilhões de pessoas? As tratativas sobre alimentação e sua relação com saúde pública devem considerar os fatos e números que estão postos, a fim de que medidas efetivas sejam tomadas e resultados palpáveis alcançados. Acima de tudo, que a opinião pública se forme com base em dados concretos, e sem viés, para que os consumidores façam suas escolhas de modo consciente e com absoluta autonomia.
Mini CV: Talita Fernanda dos Santos Andrade é Engenheira de Alimentos e MBA em Marketing pela UNICAMP. Carreira desenvolvida ao longo de 15 anos em indústrias, sendo 12 anos na área de Assuntos Regulatórios & Científicos, em empresas nacionais e multinacionais de grande porte no segmento de bebidas alcoólicas e não-alcoólicas e ingredientes alimentícios. Desde 2019, é responsável pela área de Assuntos Regulatórios da FrieslandCampina Ingredients Latam e aluna de mestrado em Ciência dos Alimentos na FEA/UNICAMP. Atual colunista do Blog Food Safety Brazil, escreve artigos sobre temas regulatórios e legislação de alimentos.